A aldeia de Urgueira, concelho de Águeda, revive no domingo uma romaria secular cujo ponto alto é a proeza de um homem entrar num forno a 300 graus com uma broa de 70 quilos e sair vivo. Manuel Almeida Farias, da associação etnográfica Os Serranos, disse à Agência Lusa que a Romaria do Milagre d'Urgueira foi recuperada em 1996, depois de mais de cem anos no esquecimento, e desde então leva todos os anos "quatro a cinco mil pessoas" a uma aldeia com apenas doze habitantes. Sem música "pimba", colunas de som ou palcos, a romaria gira à volta da encenação do "milagre da Urgueira", actuações contínuas de sete grupos folclóricos e gastronomia local. Segundo explicou Almeida Farias, a romaria secular tem origem nas promessas feitas pela família Duarte Reis, que emigrou para o Brasil, pagas com a construção no fim do século XIX de um forno comunitário e da ermida de Nossa Senhora da Guia, na aldeia de Urgueira, concelho de Águeda. Segundo a lenda, num acto "espontâneo e temerário", um homem entrou no forno, onde ardia lenha há vários dias, para depositar uma broa de milho, e saiu vivo. O acto acabou por se fixar como "milagre da Urgueira" na consciência popular e passou a atrair muita gente de outras aldeias à Urgueira no terceiro domingo de Agosto, curiosas para ver o homem entrar no forno e sair vivo. Em 1904, o cepticismo de alguns em relação ao acto "milagroso" acabou por provocar confrontos que levaram à intervenção da guarda real e à proibição da romaria. Durante mais de cem anos, o "milagre" subsistiu no folclore local e acabou por ser recuperado em 1996 pela associação etnográfica. Desde então, todos os anos um homem entra no forno, que já arde há três dias, protegido do calor apenas com um fato tradicional serrano, de borel, como se fosse passar uma noite ao relento. "O que guarda do frio guarda do calor", pelo menos na tradição serrana, disse Almeida Farias. Os eleitos para entrar no forno têm sido escolhidos entre os membros da associação e o gesto é visto como "uma prova de coragem, talento e autodomínio" e apesar do risco, voluntários não têm faltado, assegurou. Depois da broa colocada no forno, espera-se "cerca de uma hora e meia" até cozer e o enorme pão é então repartido por toda a gente. Os pedaços de broa cozida no forno da Urgueira são uma espécie de amuleto de boa sorte e aguentam anos sem criar bolor. Apesar da aura "milagreira" da romaria, a resistência do pão aos fungos tem uma explicação natural: "com um forno tão quente, qualquer vestígio de humidade desaparece e o bolor não entra". A romaria procura recriar um ambiente semelhante ao que se encontraria no final do século XIX, "abolindo palcos e aparelhagens sonoras", com os grupos folclóricos a repartirem-se por três eiras, entre os romeiros, que muitas vezes se juntam às danças e cantares. Também para "resistir à massificação", as "comidas rápidas" ou de roulote não entram na festa, alimentada e regada com produtos tradicionais. Manuel Almeida Farias afirmou que a recuperação da romaria "contribuiu para a inversão da desertificação" da zona, e fez com que "as autarquias começassem a olhar para esta aldeia de outra forma", construindo melhores acessos. Embora a Urgueira tenha apenas 12 habitantes permanentes, desde 1996, "cerca de vinte casas" que estavam abandonadas foram recuperadas e são utilizadas como segunda habitação. Desde as oito da manhã de Domingo, as broas para venda começam a entrar e a sair do forno até à "proeza" que inspira a romaria se repetir, às 11:30, seguida de missa campal enquanto a broa coze. Durante a tarde come-se, bebe-se, dança-se e coze-se broa até à despedida serrana, com todos os grupos juntos, pelas 17:30. |