De uma maneira viva e irrespondível, os bispos de Espanha, em documento recente sobre a “reprodução humana artificial”, assim lhe chamam, denunciam que “o embrião humano recebe uma tutela legal menor do que aquela que se dá aos embriões de certas espécies animais protegidas”. Faz pensar, a tal ponto chegou o laicismo do estado. Por estes dias de Páscoa, a festa da vida, o problema também se vem pondo entre nós, com preocupação de muita gente que luta por uma sociedade que respeite a vida. O legislador escuda-se na maioria parlamentar para assegurar a vitória antecipada. Mau caminho, em matéria tão delicada. e grave. Não podemos, nem queremos habituar-nos a aceitar a ligeireza com que se vão abordando problemas sérios, com vista a novas leis. Não se pede agora mais, e este pedido é mais que legítimo, do que, em relação à “reprodução medicamente assistida”, assim lhe chamamos nós, se dê tempo e espaço para que as pessoas sejam esclarecidas, vejam, em todas as suas dimensões, o alcance das decisões possíveis, e possa reagir livremente. Não basta falar do vazio legal sobre o tema e aproveitar a maré para preencher este vazio de uma maneira menos adequada. Se é grande o vazio legal, a culpa não é, nem do povo, nem dos embriões, previamente condenados à morte. É o órgão legislador que tem de se interrogar, porque o povo está farto do parlamentarismo à século XIX, em troca da atenção, estudo e reflexão, sobre assuntos do seu interesse. Consta que tudo se tentava decidir, se é que não se continua na mesma, na calada dos arranjos da noite partidária e na distracção de um povo, cada vez mais alheio à política, porque, com futebol, jogos e novelas televisivos se dá por satisfeito, se não o acordarem. Por isso mesmo, os atentos são considerados cada vez mais incómodos num povo anestesiado e alheio a coisas essenciais. Sabemos que há muitas esposas desejosas de procriar e mulheres solteiras, ansiosas por um bebé, sem o incómodo de terem de o gerar. Para as primeiras há caminhos já traçados, para as segundas não vemos que caminhos legítimos, porque uma criança não é um brinquedo de luxo, e tem direitos que não se casam com caprichos e emoções. “O embrião, lê-se no documento dos bispos vizinhos, merece o direito devido à pessoa humana, porque não é uma coisa, nem um mero agregado de células vivas, mas o primeiro estádio da existência de um ser humano.” Não respeitar o embrião, embora se lhe dêem outros nomes para acalmar a consciência, é abrir portas a formas que podem ir da procriação à comercialização, a fins cosméticos ou outros de igual teor. Procriação, investigação, indústria e negócio são termos que, no caso presente, se colam. Mesmo com leis que se dizem reguladoras de abusos, a ânsia de ir à frente na investigação e de tirar proveito material desta indústria, tem sempre patronos, dentro e fora do sistema. Os políticos, menos esclarecidos e pouco seguros, gostam de aproveitar, quando não mesmo de provocar, o facto consumado, que torna, depois, mais difícil o recuo. O facto consumado sempre foi uma estratégia marxista, para depois se poder gritar pelo respeito devido a direitos adquiridos. Todos sabemos que assim é, e aí está a prová-lo a Constituição, votada em circunstâncias que nada têm a ver com a realidade democrática de hoje, intocável em aspectos fundamentais, mas mutável, ao sabor de interesses e arranjos partidários. Não é caso único nesta estratégia antidemocrática, dominada pelo medo de perder, sempre que no jogo as regras são claras. Celebra-se a festa da vida. A Páscoa é isso mesmo. Sonham-se, entretanto, projectos de morte: o aborto prometido, o divórcio agilizado, o embrião destruído? Pode a Igreja calar-se, quando a pessoa humana é espezinhada, sem se poder defender? Nunca.
António Marcelino* *Bispo de Aveiro |