Foi numa paróquia distante, onde já não ia há muitos anos. Tinham-se feito obras de vulto como apoio pastoral ao templo, e o pároco quis mostrar-me tudo. Pelo meio da visita, foi falando de um grande benfeitor, por sinal, muçulmano, pessoa de haveres e de maior generosidade, com uma abertura extraordinária em relação a todos quanto faziam alguma coisa pelos outros, fossem eles quem fossem. Como parecia proporcionar-se a ocasião, quis apresentar-me esse seu amigo. Não foi possível. Eram os dias do Ramadão e ele recolhia-se num silêncio orante. Só aparecia quando era mesmo necessário. Este testemunho, que denunciava um grande respeito pelas normas da sua religião e por um amor efectivo ao seu próximo, tocou-me e fez-me pensar. Na nossa sociedade, quem não tiver convicções profundas, corre o rico de ser inútil e abafado pelos seus interesses ou por um silêncio que lhe é imposto e a que não resiste, pelas mais variadas razões. Há, hoje, um clima social que parece querer atirar para a clandestinidade aqueles que decidem fazer o seu caminho com liberdade interior. O ambiente em que, por vezes, se vive, pesa, atrofia, denigre, mormente quando se trata de aspectos religiosos mais respeitantes à pessoa individual e menos a expressões públicas tradicionais. Mesmo assim, não falta quem se incomode com a manifestação religiosa pública, ainda que respeitosa e séria, vendo sempre aí agressão gratuita aos não crentes e poluição a mais num estado laico. O silêncio, imposto a outrem, é sempre um ataque injusto à liberdade de expressão, qualquer que seja a forma de imposição. A liberdade religiosa é, se for tomada a sério, a mais construtiva das expressões da liberdade humana. Exprime a profundidade interior, o compromisso de uma vida, o sentido da acção, a pobreza pessoal de quem só aposta no material e se resigna ao vazio e ao efémero. Ela convida à abertura ao transcendente, não se conforma com o meramente exterior, denuncia as formas de mentira e opressão. Por isso tem sido, ao longo da história, a liberdade mais perseguida, porque a mais incómoda para quem não se sente interiormente livre e põe a sua força no poder, seja ele político, material, ideológico ou mesmo religioso, de cariz fanático. Porém, a mesma história vai dizendo que é a única liberdade que sobrevive a perseguições e ataques, calúnias e declarações de morte, porque é aquela que qualquer pessoa pode guardar dentro de si e expressar e cultivar, mesmo quando o clima é adverso. “O que está dentro de nós e Deus nos deu, ninguém o rouba se a gente não quiser”. Assim me disse um homem humilde, mas convicto, anónimo para mim, como eu para ele, quando, numa manhã de Domingo, lhe dei boleia na estrada, que ambos percorríamos. Quem tiver força interior para afirmar, em qualquer circunstância, o mundo da sua fé, será sempre vencedor. Um testemunho aberto e público de uma fé convicta e coerente, à revelia dos ventos laicistas, que sopram e vão consolando os instalados que se negam à procura do que o coração lhes exige, e constipando muita gente de religião fácil, recebida por tradição, mas nunca acolhida, motivada e alimentada, é sempre um ar novo e reconfortante numa sociedade envelhecida e vazia de sentido. O confronto, religioso ou não, entre pessoas sérias não é oposição. É expressão de respeito e de mútuo enriquecimento, de abertura e de tolerância activa. Para se afirmar aquilo em que se acredita não é preciso destruir o outro que não tem o mesmo credo político ou religioso. Os que lutam contra outra pessoa, não tendo no horizonte senão a sua destruição, ainda que seja por displicência ou mera sobranceria, denunciam pobreza moral e menos respeito para consigo próprios. Estas pessoas, que as há e gozam do favor da comunicação social, empobrecem sempre a sociedade. D. António Marcelino* *Bispo de Aveiro |