A crónica de hoje não me pertence. Gostaria de assiná-la, mas não posso. É de um escritor e poeta por quem tenho muita admiração. O seu espírito acompanhou o imigrante no caminho do exílio voluntário e serviu-me muitas vezes de comida nocturna nos dias difíceis da aclimatação, quando resolvi enveredar, como todos vocês, pela caminho do sonho que nos atraiu a estas paragens. Mas, nas voltas que a vida nos obriga a dar, muitas vezes esquecemos passagens essenciais da nossa vivência, e até aqueles que ajudaram a modelar o barro daquilo que nós somos. Que ajudaram a moldar a nossa alma.
E Miguel Torga, é um desses espíritos a quem o meu espírito deve inspiração, equilibrio, humanismo e sensibilidade poética. Porque o escritor de prosa lavada e concisa, edificante, artística na sua singeleza sem arabescos, era também um poeta na verdadeira acepção da palavra.
Há dias, rebuscando entre os livros que trouxe de Portugal, dei de caras com o "Diário", de Miguel Torga, numa edição de 1946. E confesso o meu pecado. Há muito que já não folheava um livro que me serviu de comida espiritual, nas noites de frio e neve, dos meus primeiros tempos de América.
Eram as palavras do Miguel Torga, que me aqueciam e me davam o sustento de que a minha fome de ausente, necessitava. Mas o tempo é cruel. O tempo tudo devora e tudo faz esquecer. E sinto uma espécie de remorso, por ter esquecido por tão longo tempo a voz e a poesia humanamente bela do "meu amigo" Miguel. Por isso, estas falas hoje são uma homenagem a esse insigne prosador, poeta e médico, que se chamou Miguel Torga, nascido na dureza da serra que ele calcorreou de pés descalços, entre as "torgas" que ele adoptou como pseudónimo. É um trecho do seu "Diário". Quem fala agora é ele:
"Coimbra, 22 de Maio - Combater é, em termos absolutos, uma diminuição. O homem, quer defenda a pátria quer defenda as ideias, desde que passa os dias aos tiros ao vizinho, mesmo que o vizinho seja o monstro dos monstros, está a perder grandeza. Sempre que por qualquer motivo a razão passa a servir a paixão, houve um apoucamento do espírito e é difícil que o espírito se salve num processo onde ele entra diminuido.
Mas quando numa comunidade alguém endoidece e começa a ferir a torto e a direito, é preciso dominar o possesso de qualquer forma e a guerra é fatal. Então, embora sabendo que vai empobrecer a sua alma, o homem normal começa a lutar, e só a morte ou o triunfo o podem fazer parar. É trágico, mas é natural.
O que é contra todas as leis da vida é ficar ao lado da contenda como espectador. Sendo uma dimuição combater, é uma traição sem nome lavar as mãos do conflito e passar as horas de binóculo assestado a contemplar a desgraça do alto dum monte.
Assim é que nada se salva. Fica-se homem sem qualquer sentido, manequim vestido de gente, coisa que não tem personalidade. Porque nem se representa a inteligência, nem o instinto nem qualquer das forças que nos fazem viver. É-se, mas estátua de carne petrificada no meio dum mundo onde sempre é preciso tomar posição, optar, para merecer o equilíbrio final que a própria catástrofe implica."
Manuel Calado* *Jornalista nos EUA
E a terminar, um poema dedicado à serra onde nasceu:
MARÃO Serra, seio de pedra Onde mamei a infância. Amor de mãe, que medra Quando medra a distância.
Dura severidade Tapetada de acenos Às ilusões da idade E aos deslizes pequenos.
Velha raiz segura À universal certeza De um gesto de ternuma E um pouco de beleza.
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