Vimos ouvindo a personalidades conhecidas e mesmo a gente que não aparece na ribalta da sociedade mais mediática, a referência frequente e enfática à ética e aos valores republicanos, de mistura com a confissão ostensiva de agnosticismo e laicismo. Respeitando o mundo próprio de cada um, coisa que para mim não é nada difícil, interrogo-me sobre que valores são esses que não coincidam com outros, acolhidos e seguidos pelo comum das pessoas, que não saberão mais da república, que o feriado, sempre agradável, do 5 de Outubro. Os valores republicanos que mais se evocam, como grandes conquistas da Revolução Francesa e, para nós com a mudança política de 1910, que as diversas obediências maçónicas interpretam a seu jeito, são a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Afinal, valores genuinamente evangélicos, que o cristianismo propagou e tornou universais, mesmo quando alguns sectores religiosos ou políticos não os cumpriram nem respeitaram, ou andaram na vida à revelia da proposta feita. Falar, depois, de solidariedade, de tolerância, de respeito pelos outros, não é senão reafirmar atitudes que traduzem a aceitação da trilogia atrás referida, no seu sentido mais largo. Porém, basta que se soltem as emoções e se toque em interesses pessoais ou de grupo, para logo se ver que, ontem como hoje, nos mais diversos quadrantes sociais e políticos, uma coisa é afirmar valores e dar-lhes paternidade, outra, bem diferente, mostrar na vida compromisso permanente com eles. É a verdade ligada a zangas de comadres ou de compadres. Se falarmos de ética, as coisas complicam-se. Ética, de que República? Houve e perduram tantas vivências republicanas de sentido oposto, que mais vemos escadas montadas para subir, ombros encostados para amparar, alçapões abertos para enterrar, que princípios não conspurcados, que possam nortear o sentido nobre da vida em comunidade, sem privilegiados nem preferidos e sem terem de se mendigar favores. Ser republicano ou monárquico é um direito que assiste ao cidadão que gosta ou adere a qualquer dos regimes. Mas que isso não sirva, de um ou de outro lado, para catalogar portugueses de primeira e de segunda e deixar fora, como não existentes, os que já nem sequer são objecto de catalogação. O orgulho e o preconceito não dignificam ninguém, qualquer que seja a sua adesão ideológica, muito menos quando se montam ou exigem vistosos palanques de ostentação, que hoje dão pelo nome de meios de comunicação social. O tempo da descriminação e da subserviência está a terminar. Felizmente cada cidadão vai despertando para a sua dignidade e para o direito que lhe assiste de ser respeitado e de ter voz. Trata-se de um processo irreversível. O laicismo fecha os horizontes do transcendente e acaba por mutilar, inexoravelmente, tanto as pessoas, como uma sociedade de direitos e deveres. Para muitos parece ser o espaço privilegiado para a afirmação dos valores republicanos. A laicidade, ao contrário, marca a legítima autonomia do sagrado e do profano, não antagónicos, mas como expressão louvável e libertadora das pessoas e das comunidades. É uma atitude a respeitar e a promover. Sem medos. Ser tolerante, reconhecer a dignidade de cada um em relação a si e aos outros não é um mero valor republicano. É um dever de todos, porque é um direito humano, fundamental e inalienável, que a ninguém se pode negar.
António Marcelino* * Bispo de Aveiro |