Se a Natureza fosse uma pessoa humana, mereceria que lhe chamássemos todos os nomes feios da cartilha, pelo que acaba de fazer às gentes e às coisas dos estados da Florida, Alabama e Mississippi. Matou, sem dó nem piedade, muitos milhares de pessoas que não puderam fugir a tempo. Destruiu o trabalho humano de gerações. Desprendeu as águas e mergulhou tudo num mar de lama e detritos, inquinou a água de beber, e, no meio de tanta água, deixou o povo sem água para matar a sede, sem luz, sem comida e sem conforto, entregando-se à pilhagem para sobreviver. Semeou o choro, a incerteza, a morte e a pobreza, especialmente nas zonas que já eram pobres. Foi uma razia. Uma hecatombe. Uma devastação sem peso nem medida. Na verdade, havia razão para não aceitar, sem revolta, a destruição, a morte e a miséria dos que tudo perderam, inclusivamente dos seus meios de subsistência. A Natureza é uma mão sem corpo, que castiga e fere sem compaixão. A sua lei é exacta e castiga sem contemplações. Não aceita rogos, nem pedidos, nem orações. Nem cultos. Nem promessas. Nem ladainhas. Nem vénias. Nem as tele-lamúrias dos que vendem o céu aos talhões. Mas haverá razões de peso para que ela actue desse jeito? Antigamente, os prenúncios eram negócio dos profetas e videntes, que tudo sabiam e conversavam, tu cá tu lá, com as forças ocultas que só eles entendiam. E, eles, sabiam que as calamidades naturais eram obra daquela força “que mais alto se levanta”, no vernáculo dizer do nosso Bardo, e se levantava mesmo para castigar os desmandos das criaturas. Recordo que, aquando do ataque terrorista, do 11 de Setembro, um dos tele-pastores, muito conhecido e influente nos negócios de Deus e do Partido Republicano, pregou, do alto do seu microfone, que se tratava de um castigo de Deus, por causa dos pecados do aborto, dos gays, dos liberais e de todos os que violam os Mandamentos. Deus, aquele que escreve direito por linhas tortas, servira-se dos fanáticos do Islão para castigar os pecados dos americanos que não seguem a sua lei. Porém, o nosso Presidente não aceitou, à letra, o pronunciamento do seu amigo, nem o suposto castigo de Deus, por causa do aborto e dos pederastas, e enviou, de presente, ao Bin Laden, o autor da proeza, que se encontrava no Afeganistão, umas dúzias de bombas inteligentes, que escavacaram muita coisa, menos a “toca do ladrão”. Os que se julgam sabedores de coisas ocultas, como aceitam estas razias com que a Natureza nos brinda, de vez em quando? Interpretam-nas, realmente, como castigo divino? Como acasalam eles estes acontecimentos, com a vivência humana? E como é que eu próprio tenho a pretensão de interpretar este poder que está para além do meu entendimento? Dir-vos-ei que sou tão ignorante como todos vocês. E, parafraseando o sábio Sócrates, da Grécia antiga, direi apenas que, “só sei, que não sei coisa alguma”. De qualquer modo, são aterradoras as imagens que a televisão trouxe até nós. O Katrina foi quase equivalente ao maremoto da Ásia. E, perante tanta desgraça e destruição, o nosso pensamento fica à deriva, sem saber a quem atribuir este acto da Natureza, talvez em resultado de termos violado as suas leis, com a nossa prepotência e arrogância de poluidores da terra, da água e do ar que respiramos. De qualquer modo, por muito bárbaro que seja o terrorismo dos fanáticos do Islão, nada o pode comparar ao terrorismo da Natureza. E, se toda esta desgraça se deve ao “intelligent design”, não sei que vos diga.
Manuel Calado* *Jornalista |