O povo falou e, quando o povo fala, não é preciso “pôr mais na carta”. Depois da guerrilha da longa e vitriólica campanha, chegou a hora do ajuste de contas. E os rivais de ontem baixaram as armas, apertaram-se as mãos e disseram palavras bonitas de consumo nacional. É da praxe democrática que, após o prélio, os contendores ponham as armas de lado e digam ao povo que, seja quem for o timoneiro, é preciso que o barco da nação não se afunde. Bush e Kerry falaram-se pelo telefone e, como bons americanos, disseram o que é dito em tais ocasiões. Kerry felicitou Bush pela sua vitória e o Presidente felicitou Kerry, pelo esforço e convicção que pôs na sua campanha. Até aqui, tudo ok. Felizmente, não houve uma repetição do que aconteceu na eleição de dois mil. Desta vez, o sr. Bush ganhou com votos contados e não com o auxílio do tribunal. Porém, as nações e a política são corpos vivos em constante movimento. Os democratas estão dando balanço aos motivos da sua derrota. A sua mensagem não conseguiu convencer a maioria dos americanos. Os temas por eles glosados não foram suficientes para levar à vitória. O desemprego, a guerra, os descontos nos impostos aos ricos, a oposição dos conservadores às pesquisas científicas, tudo isso parece ter caído em ouvidos de mau pagador. Desta vez, a nação mostrou-se dividida ao longo das linhas da moral e da religião. Apesar do muro que se supõe extremar politica e religião, ultimamente, alguém está furando essa muralha e juntando as duas forças. E a táctica surtiu o efeito desejado. Carl Rove, o arquitecto da campanha de Bush, está de parabéns pelo sucesso da sua estratégia. Com a mobilização dos neo-conservadores da direita, dos evangélicos, do grande capital, do poderoso loby das armas, dos que se opõem às pesquisas com as células embrionárias, aos gays e ao aborto, a vitória estava garantida. Depois, o país está em guerra, e existe aquele dito, de que não é bom “trocar de cavalo no meio do rio”. No entanto, o Presidente, que diz estar disposto a unir o país, não poderá fazê-lo facilmente. A direita evangélica, segundo os observadores, vai pedir a recompensa pelo importante papel que desempenhou na reeleição do sr. Bush. Vai exigir uma emenda constitucional, proibindo o casamento de gays, vai pedir a abrogação da lei da livre escolha da mulher na questão do aborto, vai pedir uma política mais activa em defesa dos chamados valores familiares ou morais e a nomeação de juízes para o Supremo Tribunal, que representem esses valores. E as promessas de união do país terão de ficar em águas de bacalhau. O sr. Bush não tenciona ceder terreno aos pontos de vista liberais, defendidos pelos democratas. E a luta política não pode deixar de se reacender. Um outro ponto controverso é o plano do Presidente, de reformar o sistema do Seguro Social. E esse foi um ponto que ele tocou, na primeira conferência de imprensa dada depois da reeleição. O plano prevê o investimento na Bolsa, de parte do dinheiro contribuído, agora para o Social Security. Porém, os economistas dizem que, retirando as contribuições dos empregados mais jovens, do fundo da segurança social, este terá um défice de cerca de três triliões de dollars e ficará sem capacidade para pagar a reforma e benefícios aos reformados mais velhos. No actual sistema, são os contribuintes jovens, que pagam para a reforma dos velhos. Mas se os novos forem permitidos de investir o dinheiro na Bolsa, de onde vão vir os fundos para pagar a reforma e os benefícios aos idosos? Este plano vai, decerto, causar grande controvérsia e reabrir o fosso das divisões partidárias. Na politica internacional, não se sabe ainda que caminho o presidente tenciona seguir. No seu primeiro mandato, decidiu seguir uma política um tanto arrogante, sem a cooperação dos aliados tradicionais da América, e precipitou o país numa guerra desastrosa, com custos descomunais em vidas e fazenda. Acusam-no os democratas de ter sido imprudente e de ter utilizado informações apócrifas, que não correspondiam à verdade dos factos. Há quem diga que os planos de democratização do Iraque são demasiado ambiciosos para um país que nunca conheceu um regime democrático. Será que a sangrenta experiência do Iraque lhe ensinou alguma coisa? Mas a nação falou e o sr. George W. Bush é o único presidente que nós temos. E só se deseja que ele siga uma política centrista, nem muito à serra nem muito ao mar. O grosso da nação é moderado e não gosta de extremismos, nem da direita, nem da esquerda. E que as religiões continuem a assumir o seu papel moralizador, sem interferirem demasiado no campo da governação política. Basta olhar o papel pernicioso que a religião, levada ao fanatismo, está representando nas nações muçulmanas. Foi esse fanatismo religioso, que gerou essa nova arma, tão perigosa como uma bomba atómica, chamada terrorista-suicida, contra a qual nada podem as bombas inteligentes, os canhões, ou os bombardeiros. Estes, quase só matam inocentes e, muito raramente, algum terrorista descuidado. O exemplo da Inquisição, na Idade Média, e a perseguição das Bruxas de Salem, em Massachusets, são a prova da loucura sanguinária a que o fanatismo político-religioso pode levar. E não esquecer que também temos por cá os nossos fanáticos, que já têm feito bastante vítimas. Manuel Calado* Jornalista na América |