Tempos atrás, a palavra solidariedade não era muito do agrado de pessoas desconfiadas das palavras que mexiam com sentimentos, por se pensar, então, que elas eram pouco evangélicas e poluidoras de tradições religiosas. Para a baptizar, dado que cada dia se generalizava mais o seu uso, acrescentava-se à solidariedade a expressão “fraterna”. Assim não havia confusões e tentava-se para ela uma nova matriz, porventura menos laica. Também a gente grande que andava menos pelos espaços religiosos pretendia impô-la como um valor republicano, a contrastar com a caridade, de que então se falava com desprezo e displicência.
Estas guerrilhas de gente pequena foram ultrapassadas pelo tempo, que não respeita senão o que merece ser respeitado.
“A verdadeira solidariedade começa onde não se espera nada em troca”, diz o autor do “Principezinho”, António Saint Exupery, um coração lavado que deu valor à paciência de quem sabe esperar, aos pequenos gestos de amor, à sabedoria em todas as suas formas. Publicou-se há pouco um livro, cujo título é ilustrativo e caminho aberto para quem olha os outros e o mundo com sentimentos de irmão e de pessoa responsável. “Não há futuro sem solidariedade” – assim se intitula. O autor é Dionísio Tettamanzi, arcebispo de Milão.
Mas mais do que uma discussão de palavras, embora já ultrapassada, interessam os gestos que as traduzem em vida. Acabamos de ter conhecimento destes gestos bem eloquentes e significativos.
Apesar do tempo ser de crise, o Natal aquece os corações e tira-os da indiferença. Foi assim que o Banco Alimentar contra a Fome recolheu 2500 toneladas de alimentos, mais de 30% do que no ano passado. Em 1992 tinham-se recolhido 17,4 toneladas.
A operação Natal 2009 contou com a participação de 27 mil voluntários. O voluntariado social é, também, uma forma de solidariedade que muitos vão descobrindo e lhes permite uma melhor respiração interior, que vem sempre ao encontro de quem faz bem sem olhar a quem, e sem esperar em troca senão a alegria de que muitos beneficiaram de uma ajuda, anónima e discreta.
Já existem em Portugal 17 Bancos Alimentares, integrados nos 282 que há no mundo.
A solidariedade social é um dos sinais dos tempos, mais visíveis e eficazes, ao alcance de todos os que andam por aí de olhos abertos e não dispensam, no seu horizonte habitual, os feridos da vida, que os tempos que correm multiplicam em espiral.
Milhares de instituições de solidariedade, sem fins lucrativos, respondem, diariamente, a carências sociais de toda a ordem. Têm elas de se guardar da rotina e do desvirtuamento, sempre perigosos e à espreita, quando alguns apoios vêm do Estado que, por si, não faz caridade e condiciona, muitas vezes, a solidariedade a burocracias com pouca gratuidade e a interesses nem sempre claros.
O espírito do Natal alimenta a solidariedade e os gestos de generosidade e fraternidade. Não há que tirar-lhe esta riqueza, antes fazer que ela perdure, porque em todos os dias há gente que precisa e gente que pode ajudar. Os pobres, por exemplo, estão sempre disponíveis para ajudar sem papeis, sem juros, sem prazos, os mais pobres que eles.
Não sei, porque normalmente não se diz, se na contagem dos milhões de lucros das grandes empresas, privadas ou estatais, há prevista alguma alínea destinada aos pobres ou às instituições que deles cuidam todos os dias. Dar a quem precisa é um gesto extraordinariamente rentável, do qual há gente que nunca não se apercebeu.
Nada como pôr em prática, porque é este o modo pelo qual se mostra o valor das teorias.
António Marcelino |