The Bicycle Thief Faz pouco mais de três meses que há cinquenta e sete anos a minha avó recebeu de sua mãe a sua primeira e única bicicleta. De todos os seus pertences nada a fazia vibrar mais do que pegar nela e sair pelas estradas de Anadia. Do fim da Póvoa do Pereiro, pedalava virada ao centro, a passar pelas brigadas da GNR que a avistavam e obrigavam a cumprir os semáforos do grémio, para ir as compras. Seguia depois em direcção aos bombeiros, por Arcos até Alféloas para ver a bisnetinha Mariana. Hoje quando cheguei a casa com os meus trinta e um anos foi como se voltasse a ver nela o mesmo olhar de quando eu fazia alguma malandrice que a decepcionasse. “Miguel, ontem roubaram-me a bicicleta” disse-me entristecida com agua nos olhos. Dei por mim a pensar como é que será possível? Só o quadro do monstro pesa mais do que a jante de um pequeno tractor! Lanchei com pressa e meti-me pela estrada fora num sem rumo a tentar encontrar a bicicleta azul-escura que sempre ali esteve ao alcance da nossa vista. Sempre foi sinal da presença da minha avó para a quem conhece. Dei comigo a pensar que tudo se poderia fazer para recuperar esta bicicleta sentimental. Deambulando em círculos com a estação da Curia no seu epicentro dei comigo a relembrar tantos momentos que ficaram em mim subscritos pela presença daquela bicicleta azul. Lembro-me como se fosse apenas ontem de a ver chegar a casa com molhos de couves na cabeça, enxada presa no suporte atrás e a pedalar tão graciosamente como se fosse o Lance Armstrong a cortar a meta, e por certo com mais velocidade que o Lance. Vezes sem contas, por minha culpa, a minha avó via o autocarro do ciclo a passar, pegava em mim com gestos que lembram artes marciais, e comigo no suporte pedalava virada a capela de S João para apanhar o autocarro. Esta lembrança ficará sempre na minha memória como um testamento da sua perícia em provas de velocidade. Digo isto porque não é humanamente possível que de o avistar o autocarro a passar ao ponto de partida que ela conseguisse o tal feito de ainda me conseguir por nele, mas não me lembro de o perder uma única vez. Era também estas vezes em que eu mais depressa acordava para o dia, agarrando a minha avozinha com medo pela minha própria vida. Noutras alturas, com a cabeça algures perto de Vénus, o netinho lá se esquecia do equipamento de educação física no autocarro na viagem de regresso a casa, e assim, vezes sem conta lá ia a avozinha de bicicleta virada as camionetas em Anadia para reaver o equipamento e voltar sem deixar esturrar o jantar. Esta segunda-feira a avozinha decidiu que melhor seria em ir de bicicleta até a estação da Curia para apanhar o comboio para Coimbra. Tinha feito planos para para poder dar as boas vindas á prenda que uma cegonha de primavera trouxe aos nossos vizinhos. Quando ao fim do dia voltou, já não encontrou rastos da sua velha amiga de viagem. Tinha sido levada por alguém que nela certamente viu só uma viagem mais fácil do que a alternativa. E foi assim que de tão súbito se perdeu o ícone mais impugnante que entre a nossa família circulou. Miguelito FerreiraDiário de Aveiro |