PERGUNTEI-LHE SE TINHA CASA SUA

A vida é uma novela. Contínua e sem fim, enquanto houver olhos e ouvidos para colher o sumo que ela tem. Mas nem sempre o nosso aparelho receptor está apto a receber as emoções que sintonizam com as ondas do nosso aparelho sensorial. Porém, lá vem um dia diferente, em que tudo parece estar a jeito. E assim nasceu esta crónica.

E tudo, desta vez, começou no restaurante do Miguel. Era sábado. O Miguel, atarefado com os seus ovos estrelados, omeletes e batatas fritas, estava animado e falador, e oferecia mais batatas aos comensais, e uns petiscos de malassada. O meu lugar favorito ao balcão estava ocupado, pelo que me sentei logo à entrada, junto de uma mulher dos seus sessenta e poucos anos. Eu, passando a vista pelas páginas do New York Times e ela, esperando os seus ovos com bacon, "sem batatas" - recomendou. A princípio, pareceu-me portuguesa, por ver no seu rosto uma parte do mapa de Portugal. Olhei de través e vi que tinha um anel barato em cada dedo de ambas as mãos.

Perguntei se era portuguesa. Que não. Era porto riquenha. Estava na América há 49 anos. Trabalhava na fábrica donde a imigração levou o ano passado mais de 300 trabalhadores ilegais. Ganhava 13 dólares por hora, 9 horas por dia. Oito ao preço normal, e uma hora extra, com uns cêntimos adicionais. O seu trabalho era costurar mochilas para os soldados. Tudo isto fiquei sabendo, mesmo sem perguntar.

E, como de manhã ainda na cama, havia ouvido na CNN, notícias horríveis acerca da situação financeira, não pude deixar de perguntar algo acerca da sua vida, e como estava sendo afectada pela crise. Quanto a trabalho, não faltava, por agora. O marido trabalhava também, e os filhos estavam crescidos. E, a julgar pela profusão de anéis nos seus dedos grossos de mulher de trabalho, julguei que a crise, até agora, não a afectara. Mas estava enganado.

Perguntei-lhe se tinha casa sua. Que sim senhor, tinha uma casa de duas moradias. Vivia no 2º andar, e alugava o primeiro. Mas o chefe da família do primeiro andar ficou desempregado, e não estava pagando a renda. E isso estava complicando a sua vida. Mas, quando veio a fúria dos juros "subprime", e o preço das casas começou a subir sem parança, um vendedor convenceu-os a vender a casa, com um ganho de 85 mil dólares. E eles julgaram que estavam a caminho do "sonho americano". E o mesmo vendedor convenceu-os a comprar outra, casa maior, por 250 mil dólares, com juros baratíssimos, e tiveram ainda dinheiro para comprar um carro novo, um SUV.E, casa e carro ficou tudo envolvido na mesma hipoteca. E agora, a casa e o carro pertencem ao banco, os juros aumentaram para 9%, e estão a pagar mensalmente, segundo disse, 2.500 dólares. Feitas as contas, o dinheiro que a pobre trabalhadora ganha não chega para pagar a mensalidade da hipoteca, sem contar os impostos e outras despesas. Agora, disse, queriam vender a casa e ir para um apartamento mais barato, mas não há compradores. E a casa, pela qual pagaram 250 mil dólares, agora não valerá mais de 150.000.

Mas, os pobres, como nasceram sem nada, se ficarem sem nada, já não estranham. Estão aptos a enfrentar as intempéries da vida, com equanimidade e presença de espírito. Decerto o seu sofrimento não será tão grande como o daqueles que viram ir os seus milhões na enxurrada da Bolsa.

E este foi o primeiro capítulo da Crónica da Minha Rua de sábado passado. Estava um dia de sol lindo e acolhedor. E, quando olhava, embevecido, aquela pequena natureza em festa, de repente chegou uma borboleta enorme, das maiores que já vi há muito tempo. Emocionado pelo espectáculo tive, naquele momento, uma espécie de comunicação com a inteligência da Natureza. Ali estava um pequeno ser inteligente, com um cérebro do tamanho duma cabeça de alfinete, voando, sem se desequilibrar, procurando alimento nas flores, expressão nítida da inteligência universal que reside em todas as coisas. E tive a consciência de que a terra, e as plantas e os bichos são todos parte dessa inteligência magnífica que determina a vivência de todos os seres. E nós, como filhos da Terra, com todos os elementos que ela contém, recebemos a inteligência que ela distribui em doses de todo o tamanho, desde o elefante à minhoca que busca, na escuridão do seu antro, o húmus do seu alimento.

E esta foi a Crónica da Minha Rua. Evocando as antigas, do meu tempo de rapaz.
Diário de Aveiro



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