Decerto os amigos leitores conhecem o termo “abocanhar”. Mas eu, nos meus longos trabalhos de velho escriba, não me recordo de jamais o ter utilizado, e por isso estava em dúvida. Seria apenas um provincianismo usado apenas lá na minha parvónia? Para me certificar consultei o meu novíssimo dicionário Universal Milénio, e lá estava, depois de abocar, abocador, etc. E sabem o que é abocar? É instigar os cães a abocar a caça. Sempre aprendendo. E depois lá vem “abocanhar”, que quer dizer ”tirar, cortar bocados com os dentes , trazer na boca, morder”. Isso mesmo. Trazer na boca e morder, não comer. O mesmo que eu venho fazendo nos últimos tempos da minha vivência outoniça. Abocanho, mordendo, tirando bocados com os dentes, mas não comendo nem engolindo completamente. E isso me preocupa em certa medida. Houve tempos em que eu comia e deglutia, e saboreava e guardava nos recessos da memória essa comida milagrosa que faz parte ainda hoje do meu edifício intelectual. Pedras, cimento, terra, lama palha e areia, tudo faz parte da argamaça do casebre que eu sou. Nesses tempos anteriores à era da informática, da internete, da rádio e da televisão, a leitura era a comida preferida do espírito. Ela alimentava e ia formando, com o material arrumado, a triste figura que eu sou. Esfomeado de saber e de conhecer o mundo e os humanos à minha volta, deixava-me submergir nesse banho lustral, até as tantas da madrugada. Não só abocanhando, mas deglutindo tudo aquilo que me chegava à mão em letra de forma: jornais, revistas, romances, produto de homens de ciência e pensamento, filósofos, incluindo os livros proibidos, entre cochichos de “não mostres a ninguém”. Era o tempo do “deus” Salazar, que no seu cadeirão de senhor poderoso, lá estava, impotente e ovante, velando pelo nosso bem. Um dia, um parente meu, professor em Coimbra, desapareceu do convívio dos amigos do café. Tudo em silêncio. Ninguém disse nada. Nem os jornais, nem a família. Alguns meses depois voltou a aparecer, dizendo-se, à boca pequena, que tinha ido gozar férias pagas pelo Salazar, numa estância do Tarrafal, em Cabo Verde. Entretanto, já aqui em terras do Tio Sam, chegou, além da imprensa e da rádio, a hora da televisão e da internete. E todas estas fábricas a vomitar informação. A minha memória não tem espaço para mais informação. E essa será a razão porque às vezes me esqueço do lugar onde pus as chaves, ou do que comi ao almoço. E até do que escrevo. Se me perguntarem qual foi a crónica que escrevi no princípio da semana, não sei dizer. Não me recordo do título nem do assunto. Estas palavras que aqui deixo saíram assim, porque já não há mais lugar para as reter e armazenar. Mas também esquecem com facilidade. Amanhã não me lembro delas. São fogo de vistas que duram apenas um minuto na minha, e decerto na memória daqueles que tiverem a curiosidade de as ler ou ouvir, na rádio ou na televisão. Vivemos a hora da informação a galope. O espírito humano está-se transformando. O mundo do meu pai era muito diferente do meu. O dos meus netos, não sei o que será. E se a memória me não atraiçoar, voltarei a este tema, para vos dizer um pouco dos livros que “abocanhei”, e agora dormem por aqui e por ali, e eu não consigo levá-los até ao fim, nem à estante onde estavam. Acabo de contá-los. São quinze. Dia dos Presidentes Transcorreu ontem o dia dos Presidentes Com neve caindo lá dos céus Fria, molhada, pelo vento impelida ou soprada E, caindo sempre Foi-se acumulando, lentamente Sobre a terra escalvada e nua Transformando todo o panorama Num espectáculo de lua. Ainda fui até à estação Para auscultar do mundo o coração E partilhar com os meus amigos As notícias do Dia dos Presidentes Cada vez mais perigosas e mais quentes Dando novas de um mundo a explodir E lá fora a neve, sempre a cair, sempre a cair E o termómetro sempre a descer. Na rua, figuras conhecidas Corriam embuçadas, encolhidas Para o café do Miguel. Fugindo à fúria do nevão Para tantos um tormento Para outros, fria opção Entre pão e aquecimento Que este clima da Sibéria Não tem pena ou compaixão E o dinheiro de nós todos Fiquem os senhores bem cientes Já não está chegando Para as bombas inteligentes. E assim Em dia dos Presidentes Acabei por dar de conselho Às ouvintes inteligentes Para pedirem aos seus maridos Esparramados em frente da TV E em tom doce, muito ao de leve Dizer-lhes ao ouvido: “É pá, não achas que é tempo de pegar na pá E ir lá para fora limpar a neve?” Diário de Aveiro |