HISTÓRIA ANTIGA QUE A MEMÓRIA QUER AVIVAR

Há muito que ando para dizer duas coisas em louvor da bicicleta. Este magnifico instrumento de locomoção, em cima do qual o americano Armstrong obra hoje maravilhas de resistência física, é o mesmo que separou o homem do cavalo. A bicicleta foi a primeira máquina que ultrapassou a velocidade do animal. Ela foi o génesis da revolução velocipédica.

E o que é verdade, é que eu sinto para com a bicicleta, uma afinidade afectiva especial, visto ter sido o meu pai que Deus tem, o primeiro homem a ter uma bicicleta em Soza. Ele foi, na terra, o primeiro a libertar-se das longas caminhadas para feiras e romarias. E estou a vê-lo, muito ancho, encavalitado na sua bicicleta Triunfo, de fabrico inglês, em companhia de outros “playboys” do seu tempo. Muito poucos, sem dúvida, pois quem tinha bicicleta, era considerado um ponto acima, na escala social e económica da era.

As moças lavradeiras e casadoiras deviam então olhar para um homem de bicicleta, como olham hoje para quem vai ao volante de um Mercedes ou BMW.

E uma velhota vizinha contou-me, um dia, por meias palavras, para não dizer muito, que o meu velho, no seu tempo, era um rapaz guapo e que lhe não faltavam moças lá pela região da Bairrada. E foi precisamente na Bairrada que ele foi desencantar minha mãe, então uma moça bonitona, com menos l5 anos do que ele, que ia já na casa dos trinta e tais, quando deixou a bicicleta?Isto é, quando deixou as namorações.

Os restos mortais dessa bicicleta, vim encontrá-los um dia no lagar do vinho, debaixo das agulhas de pinheiro com que se acendia o lume na lareira.

Para a minha curiosidade de menino aventureiro e sonhador, leitor do Pim Pam Pum, foi como se tivesse encontrado um tesouro. Já tinha andado no quadro da bicicleta de pau do meu vizinho Júlio, pela ladeira de S. Roque abaixo, com a sola dura dos pés fazendo de travões, mas nunca numa bicicleta de ferro. Teria então os meus seis ou sete anitos. E a primeira coisa que fiz, foi limpar as agulhas e sentar-me no selim de cabedal. Foi para mim uma sensação nova que não posso esquecer.

Os meus pés, claro, não chegavam aos pedais, mas nem era preciso. A imaginação fazia o resto. E, pedalando em seco e tocando a campainha, eu ía por montes e vales à descoberta do mundo desconhecido. Não tem conta as vezes que subi para o lagar, para me sentar em cima da bicicleta, julgar-me rapaz grande, pedalando rua abaixo e rua acima, perante a inveja do Faré, do Roubaco, do Russo e do Chicharro, os meus amigos da brincadeira.

E, um dia, quando em casa se dormia a sesta, eu tirei a bicicleta do lagar, a muito custo, saí pela porta de trás, atravessei o quintal do tio David, pai do Roubaco, e fui para a ladeira da Lavandeira. Sentei-me em cima da roda dos pedais, os pés no chão , a servir de travões, as mãos em cima no guiador, e larguei-me por ali abaixo. Os pneus, secos, sem ar, começaram a cair aos bocados. A roda de trás ia só no aro, mas isso não era problema.

As bicicletas de pau também não tinham pneus nem câmaras de ar.

E andei assim, para baixo e para cima umas poucas de vezes, sozinho, explorando o meu mundo de menino, enquanto animais e gentes dormiam a sesta, descansando os ossos cansados e fugindo à torreira do sol.

Mais tarde, meu pai tirou a bicicleta do lagar e colocou-a ao cimo da escada no sótão das bandeiras de milho. Era aí que eu passava os meus bocados, montado na bicicleta, pedalando no ar, sem chegar aos pedais, ao longo de terras desconhecidas, pelos caminhos enluarados da minha imaginação de menino.

Só por isso a bicicleta representou para mim um papel de relevo. Vi nela a libertação das longas caminhadas. Tinha a intuição de que o homem havia dado um passo de gigante no caminho da sua libertação. A bicicleta marcou o início da era da velocidade. E é a velocidade que tem marcado a escala do progresso humano.

Quando cheguei à América, a velocidade máxima até então atingida pelo ser humano, eram as duzentas e tais milhas da velocidade do avião. Neste meio século cruzamos a velocidade do som várias vezes, até chegar à lua e aos planetas, em veículos pilotados ou sem piloto.

E pensar eu que meu pai esteve no início dessa odisseia! Não sei que velocidade ele teria atingido por estradas pedregosas ou cheias de covas e lama. Dez quilómetros? Talvez vinte ou trinta nas ladeiras. Mas sempre era mais do que a velocidade do velho cavalo do tio Cavilha, puxando uma charrete tão velha como ele, quando era preciso ir ao doutor, ou a visita de cortesia, para fazer figura e poupar as solas.

Mas como esta já vai longa, terei de contar de outra vez a história da minha bicicleta de rapaz e das minhas andanças por terras da Bairrada e da Beira Mar.

Manuel Calado*
*Jornalista nos Estados Unidos da América

Minha Bicicleta de Menino

Andei por montes e vales

Sem sair do mesmo sítio

Pedalando com ardor

Como se andasse entre as nuvens

Num tapete voador

Voei por cima de montes

Sobre o mar da emoção

Com rodas presas nos pés

E asas no coração
Diário de Aveiro



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