"Karol Wojtyla, Karol Wojtyla, Karol Wojtyla", repetiu o coro de fiéis, dominado por bandeiras polacas, num adeus final a João Paulo II e no momento em que o seu corpo era transportado para a Basílica de São Pedro. Se dependesse das centenas de milhares de polacos hoje no Vaticano, João Paulo II seria canonizado antes mesmo de ser sepultado. Em crescendo, primeiro entre um pequeno grupo e depois alargando-se a grande parte da multidão, milhares de pessoas gritaram, ao longo de quase 10 minutos: "Santo, Santo, Santo". Foi a manifestação mais emocional do que um jornal italiano hoje apelidou de "invasão pacífica vermelha e branca" de Roma. Se a Itália parou, a Polónia, terra natal de João Paulo II, "viajou": estimativas indicam que um milhão de polacos veio ao Vaticano. Os seus gritos marcaram o momento mais alto das cerimónias fúnebres de hoje. Na entrada da Basílica de São Pedro, 12 homens de fato preto levantam o féretro aos ombros e caminham lentamente. Depois, já no topo das escadas, dão uma volta de 180 graus, o caixão é apresentado à praça e os aplausos transformam-se em clamor, calando os sinos que abanam sem se ouvir. Um simples caixão de madeira de cipreste - na sua parte inferior uma cruz, por cima da tampa uma bíblia vermelha, depositado numa carpete em frente do altar da eucaristia - concentrou as atenções de todo o mundo. Entre os que estavam na Praça de São Pedro e nas suas imediações, à semelhança das dezenas de milhares de italianos e de igual número de pessoas de outras nacionalidades, o último adeus acabou por ser uma celebração da vida de João Paulo II. Pela segunda vez - o mesmo já tinha acontecido na segunda-feira quando o corpo do pontífice passou na praça em direcção à Basílica - um dos momentos mais altos voltou a ser a entoação, em latim, do Magnificat. Hoje, todavia, ouvir os nomes dos Santos, 140 dos quais representados nas estátuas que circundam a praça, foi mais difícil, com o cântico a ter como pano de fundo um aplauso constante e ininterrupto, mãos, lenços e bandeiras a acenar num último adeus. Num ambiente mais calmo do que o previsto, com a polícia a preferir deixar entrar menos peregrinos no Vaticano - tanto por questões de gestão da multidão como de segurança -, mais de 300 mil pessoas concentraram-se na Praça de São Pedro e nos arredores. Nas palavras de um padre espanhol, a aclamação dá por concluída a ultima missão de João Paulo II, "a sua última Jornada da Juventude, a última Jornada da Família, a última Jornada da Paz". Quem, crente ou não, testemunhou o que aconteceu no Vaticano nos últimos dias, sente a dimensão deste acontecimento histórico, tanto pela esmagadora presença humana como pela sua diversidade. Na sua morte, João Paulo II - considerado por muitos uma das mais importantes vozes de sempre a favor da paz - uniu num mesmo espaço gente de todos os países, de todas as idades, católicos e não só, venerando deuses diferentes ou nenhum. Era uma multidão em parte motivada pela fé, em parte pela sentida homenagem a um Papa com um grande papel político internacional, ou empenhada em honrar o líder de mil milhões de Católicos, o promotor do diálogo ecuménico. Motivados pela homenagem ou pela simples curiosidade, estes milhões de pessoas foram a face visível de uma multidão que, da Ásia ao Médio Oriente (a Abu-Dhabi TV transmitiu as cerimónias em directo), de África ao continente americano, acompanhou as três horas de cerimónias fúnebres. Mais até do que a dimensão das multidões, o que mais surpreendeu esta semana na Cidade do Vaticano foi a forma calma, serena, sem distúrbios, como quase três milhões de pessoas se despediram do Papa. Este comportamento, salvo raras situações, fáceis de resolver, pautou os três dias de longas filas, enquanto o corpo de João Paulo II esteve em câmara ardente. Hoje, o cenário de calma e serenidade repetiu-se numa capital paralisada, cercada pela segurança e encerrada em luto nacional. Se, logo depois da entrada do corpo de João Paulo II na Basílica de São Pedro - momento que marcou o fim da transmissão de imagens das cerimónias -, muitos se começaram a movimentar para fora da Praça, outros ficaram por ali, alguns de joelhos, a rezar, outros abraçados e outros ainda em simples contemplação. No sentido inverso de quem saía, milhares que não tinham ainda podido chegar à Praça optaram por entrar. E assim chega ao fim, na Praça de São Pedro, uma semana dominada por multidões, a que diariamente foram distribuídos 500 mil litros de água e que em três dias deixou mais de 60 mil toneladas de lixo. Quem não chegou a São Pedro optou por um dos 127 ecrãs gigantes instalados em vários pontos de Roma e nos arredores, em Tor Vergata, a universidade onde milhares permaneceram a acompanhar as cerimónias pela televisão. A operação sem precedentes conduzida pelas autoridades italianas para acolher milhões de pessoas de todo o mundo ainda não terminou, razão por que até às 18:00 de hoje a cidade continua sem carros e os voos só são restabelecidos à meia-noite. Até lá há que continuar a gerir multidões, agora mais dispersas por vários pontos da cidade, mas ainda reunidas por um mesmo propósito: a despedida ao último papa do século XX.Diário de Aveiro |