Para quem crê, profunda e sinceramente, a Páscoa, hoje celebrada pela Cristandade à volta do mundo, é o fulcro máximo da sua crença civilizacional. Todas as culturas assentam num pelourinho de fé. Uma espécie de âncora que garante a segurança da barca social ou étnica dos povos. Há imensas religiões, crenças, tabus, mitos e ideologias, e o efeito de todo eles, é idêntico: aglutinar as massas, grupos ou agregados humanos em que cada um nasce e se acha inserido. E só por isso, as religiões e as crenças num ser oculto e misterioso, que está para além da compreensão humana, representam um papel importante, na civilização e no progresso dos povos. No entanto, em muitos espíritos, coabitam e dormem pacificamente na mesma cama, a crença e a crendice. Existe uma importante classe de pessoas bem intencionadas, que ao Domingo vão à missa e à Segunda-feira vão à bruxa. E estas duas forças acasalam-se, e formam o edifício intelectual das pessoas que assim pensam. E há até muitos que dizem que, se é bom estar de bem com Deus, também é bom não estar de mal com o Diabo. Pois o mafarrico é capaz de fazer coisas feias. Ia eu dizendo que a Páscoa é o ponto fulcral da crença dos cristãos, de que Cristo ressuscitou e subiu ao céu ao terceiro dia. E é assim que a festa da Páscoa é celebrada entre nós, os que, por vontade própria ou por tradição, pertencem ao rebanho cristão, visível ou invisível. E é a este rebanho que nós, portugueses, pertencemos, e essa crença nos levou às descobertas e conquista de terras e ao domínio de povos, a quem pela força das armas procuramos impôr a nossa Fé, crentes de que estávamos prestando um serviço a Cristo, o “Principe da Paz”. Assim pensam também os muçulmanos e todos aqueles que julgam que o Deus do Islão, é o único e verdadeiro. Mas eu, por qualquer motivo que não compreendo, prefiro ver a Páscoa pelo seu aspecto humano. E para isso dou-me a viajar pelas veredas enluaradas da memória, até aos meus tempos de criança, e assim invocar, Minha Páscoa de MeninoResuscitou, não está aqui disse o anjo às três Marias logo cedinho ao acordar? E do túmulo vazio três pombas brancas saíram pelos ares a esvoaçar.
Cá fora o sol era oiro pelas terras já lavradas sobre os brejos de Fareja e as areias brancas das lombas.
E as penas negras da gente a esvoaçar se juntavam as penas brancas das pombas.
E as moças vinham de longe muito alegres e alvoraçadas, buscar água benta nova para os dias de trovoadas. E havia água nas bilhas nos cabelos e pelo chão água de novo benzida na pia do meu baptismo pelo Reitor Pericão. Cá fora no adro os rapazes ruidosos, aos magotes preparavam-se para a queima do Judas Iscariotes.
E o velho Judas de trapos enforcado na figueira tinha bombas de foguetes a até de carga inteira. E o rapazio moleque pé descalço, em alarido imprecava com ardor o homem de palha feito o traidor arrependido. Lembro os colegas da rua todos com seu apelido eu, Minerro, o Roubaco o Faré, o Sacristão o Russo, e o Chicharro, o Caroca e o Trovão. Ao outro dia beijava-se na sala familiar a cruzfria do Senhor. havia amêndoas na cómoda copinhos de vinho fino e uma galinha p’ro Reitor.
E agora, cá deste lado do longo mar aceano em terras de bruma e neve fico com o peito mais leve lembrando o tempo passado e o drama do pobre Judas por suas mãos enforcado. --- um drama de consciência de um homem atormentado... os Judas não faltam na Terra abundam na sociedade mas Judas de consciência há bem poucos na verdade. (E na cómoda havia amêndoas e copinhos de vinho fino?) E agora só resta o luar da minha Páscoa de Menino. Manuel Calado USADiário de Aveiro |