Quando chegou ao posto da GNR de Almeirim para apresentar queixa contra o marido por agressões físicas, pela primeira vez, Paula já levava consigo 25 anos de casamento e de insultos quotidianos. Paula, nome fictício, pouco mais de 50 anos, está a ser acompanhada pela equipa do Núcleo Mulher e Menor (NMUME) da zona onde reside, três agentes da GNR de Almeirim, duas mulheres e um homem, que começam por registar a queixa e marcam um dia para ouvir o depoimento. Não é um caso único em Portugal: nos primeiros 11 meses de 2004, foram registados 6.220 casos de violência doméstica entre casais e 286 contra crianças, sendo Porto, Braga, Aveiro e Viseu os distritos com mais queixas. As vítimas são, na sua maioria, do sexo feminino (5.900) e com mais de 25 anos. E os agressores são quase sempre homens (6.063). No dia marcado, uma sexta-feira de manhã, Paula compareceu no posto da GNR, ainda com as marcas da tareia que tinha levado duas semanas antes. A cara negra e as memórias de 25 anos de maus-tratos psicológicos que culminaram em agressões físicas dominam o relato que faz à polícia na presença da Lusa. "Num período de tempo não se portava muito mal", começou por dizer Paula, como que para explicar só agora ter apresentado queixa, quando já o podia ter feito por violência psicológica. Os problemas começaram quando o marido, empregado bancário, se reformou antecipadamente e se envolveu em negócios da agricultura, que correram mal. Com esta nova vida vieram as prolongadas paragens pelos cafés da terra e o consumo excessivo de álcool. No início de vida o casal perde uma filha, mas depois tem mais duas, agora com 18 e 20 anos. De outros casamentos ela, viúva, traz um filho, e ele, divorciado, uma rapariga e um rapaz. Cedo começam as agressões psicológicas a Paula e às filhas - insultando-as e dizendo muitas vezes à mulher para se ir embora, que a casa era dele. O medo toma conta delas a ponto de irem para a cama "cada uma a chorar para seu lado" quando se aproxima a hora do pai regressar do café. As filhas culpam-na de tudo, "por não pôr fim à situação", o filho não percebe por que razão ela não deixa o marido. Os enteados, que vivem com a mãe, ela própria vítima de agressões durante o casamento, estão do lado de Paula. Há cerca de duas semanas, no dia da agressão, o ambiente em casa começou a deteriorar-se depois do almoço, quando ele começou a dizer palavrões por causa das notícias. Paula pediu-lhe ajuda com a máquina da roupa, que estava a fazer um barulho estranho. O arranjo não correu bem e ele pôs as culpas à mulher. Foi vestir-se para ir buscar um técnico e como as calças não estavam do seu agrado começou a insultar Paula, chamando- lhe "porca, suja e chula". Paula não aguentou e respondeu-lhe à letra. "Ameaçou que me matava e deu-me um murro que me fez cair para cima do lava-loiça. Apertou-me o pescoço. Julguei que morria, dei-lhe um pontapé no meio das pernas e arranhei-lhe a cara. Empurrou-me para o chão e pôs-me um pé no peito. Dei-lhe outro pontapé e comecei a atirar-lhe coisas. Ele ficou em casa e eu fui para o hospital, e desde esse dia que não me fala", conta. O agressor nem sabe que Paula apresentou queixa. Questionada sobre por que razão só agora apresentou queixa, aponta como justificação as filhas e a "imagem" que tem a manter onde mora. "Fui sempre desculpando e pensando que dias melhores viriam. Mas está a piorar", explica, confessando que ainda gosta dele. Quando os agentes lhe perguntam se está disposta a deixar o marido, diz que faz o que ele quiser, mas está pronta a reconciliar- se, dar-lhe uma nova oportunidade se ele prometer párar de beber e mudar o comportamento. "Ele tem que dizer o que quer. Se quiser reconciliar-se eu estou pronta para tentar. Desde que deixe de beber diariamente", diz, apesar de confessar o receio de novas agressões. Nota-se, no decorrer do depoimento, que quando apresentou queixa do marido não tinha consciência de que o caso iria a julgamento. Paula só queria que a GNR o obrigasse a dizer o que quer fazer com a vida dos dois. Mas Paula não é a única mulher a ser acompanhada pelo NMUME de Almeirim. Lúcia, trinta e poucos anos, tinha um casamento de dez, uma filha de quatro, e deixou tudo para trás para fugir com um homem que cedo se tornou no seu agressor. Andou desaparecida um ano e quem apresentou queixa foi a mãe. A equipa do NMUME só a conseguiu localizar na última audiência em Tribunal por causa da custódia da filha. Segundo os agentes do núcleo, Lúcia estava proibida de falar com a família e amigos, foi-lhe tirado o telemóvel, era violada e agredida com frequência, e nunca ia a local nenhum sem o companheiro, exceptuando as idas ao Tribunal em que este ficava no carro. No dia da audiência, os elementos da GNR prometeram-lhe auxílio, que aceitou a custo, e ajudaram-na a fugir pelas traseiras do Tribunal. Durante alguns tempos ficou num lar, agora está numa instituição, já trabalha e a batalha diária é para poder visitar a filha algumas horas no infantário, e, quem sabe, um dia requerer a sua custódia. Quanto ao agressor, com um passado de violência para com os pais e a primeira mulher, voltou à terra de onde ambos fugiram e não reconhece a maioria dos seus actos quando interrogado pela polícia. O NMUME, que está na dependência da Secção de Investigação Criminal da GNR, surgiu no final de 2004 e está já implementado nas brigadas territoriais de todos os distritos. O objectivo é investigar crimes "relacionados com as problemáticas das mulheres e dos menores enquanto vítimas e promover as acções de apoio necessárias". Trabalha directamente com instituições como a Associação de Apoio à Vítima, a União das Mulheres Atitude Resposta, a Comissão de Igualdade e Direitos das Mulheres, o Instituto de Apoio à criança e o SOS Criança. Para pertencer a estas equipas especiais os agentes da GNR, que já têm formação em investigação criminal, aprofundam os seus conhecimentos na área legislativa, em psicologia da criança, criminologia e vitimologia, e na caracterização da violência doméstica e seus principais elementos.
Teresa Salvado* *Agência LusaDiário de Aveiro |