Não sei se haverá dificuldade maior na vida das pessoas que reconhecer-se pecador, necessitado de perdão e de força interior para prosseguir. Não se trata de uma humilhação, como muitos pensam, embora também não seja uma glória. Não é senão a consciência serena da verdade que nos acompanha e dá logo sinal, tanto nos êxitos, como nos fracassos. O ambiente geral, com o fariseismo que nos envolve, não é muito propício à conversão interior, porque também o não é ao reconhecimento de que esta conversão nos é indispensável. A atitude para romper este circulo está na humildade assumida por quem tem consciência de que não é Deus, nem é melhor porque os outros o dizem, nem pior porque assim o consideram. A humildade é a verdade e só a considera um sentimento deprimente quem gosta de viver segundo as aparências e as cultiva com indisfarçável cuidado e esmero. Na Bíblia diz-se que todos pecámos e quem nega o seu pecado é mentiroso. O pecado não é apenas matar ou roubar, como por vezes se diz para alardear virtudes. Ele é sobretudo não fazer o bem a si próprio e aos outros. Por aí que passa a relação com Deus. A virtude não consiste num conjunto de ritos religiosos, mas no exercício permanente do amor oblativo e gratuito. É isso a verdadeira caridade. O pecado, é acima de tudo, contrariar a ordem moral que conduz ao bem e à verdade, negar aos outros os seus direitos, espezinhar valores éticos e morais que servem de travejamento à vida pessoal e social, não colaborar na justiça e na paz, posicionar-se como centro de tudo, usurpando o lugar que só a Deus pertence, como Criador e Redentor. Daqui deriva tudo o resto. A Quaresma constitui um tempo de purificação de que todos precisamos para manter a lucidez necessária e se queremos que seja a verdade a nortear a nossa vida diária e as nossas relações mútuas. Quem se dispuser a ser honesto para com Deus, sê-lo-á para com todos e em todas os momentos da vida. Hoje é frequente, nas diversas religiões ou até sem qualquer adesão a elas, ver gente a querer demarcar-se do vazio e da mentira da vida e, ao mesmo tempo, a deitar de meios que permitam a realização do seu objectivo. Procuram-se bons mestres espirituais, tenta-se, ciclicamente, a experiência de deserto, procuram-se outros com igual propósito para se sentir mais estimulo na caminhada. Este é o sentido da Quaresma. Dados os tempos que vivemos, já não se dispensa ninguém de construir a sua própria Quaresma, se quiser purificar-se e mudar para melhor a sua vida de todos os dias. António Marcelino* *Bispo de AveiroDiário de Aveiro |