Aproximam-se de novo eleições, e o português cujas preocupações vão além do seu umbigo angustia-se. É tal o descrédito nos actuais políticos que as perspectivas de futuro do país parecem não poder ser senão pessimistas. E é nestes momentos de crise que o olhar de alguns dos mais descrentes se costuma voltar para um passado mítico ou para a esperança num futuro em que D. Sebastião regressasse - o que vem a dar no mesmo: sebastianismo e saudosismo político andam de mão dada. Não faltará quem por esse país fora desabafe: «isto só lá vai com outro Salazar!». E, no entanto, o tempo dos homens providenciais acabou... O que não acabou foi o efeito maligno das suas políticas e palavras nos portugueses. É o que nos diz José Gil, o pensador português que acaba de publicar «Portugal, hoje - O medo de existir», um livro corajoso que «mete o dedo na ferida», que não poupa ninguém, nem do passado nem do presente. «Somos todos responsáveis pela nossa inércia e irresponsabilidade» - parece querer dizer-nos com o livro. Mas não se furta a apontar os 48 anos de salazarismo como causa «recente» de sermos assim. Mas o que é o salazarismo? O salazarismo é uma mentalidade, um conjunto de «comportamentos sedimentados» (nas palavras de José Gil) que impedem que a nossa força criativa se manifeste. É o medo que temos individualmente de sermos alguém, a inveja que cultivamos por aqueles que o ousam ser. Com o medo, impedimo-nos de agir; com a inveja, impedimos os outros. Tabelamos tudo por baixo, pela fasquia da modéstia salazarenta e dos brandos costumes. O salazarismo é como uma chuva persistente, doentia, que nos mantém molhados sem que disso nos apercebamos. Será esta crítica anacrónica, após 30 anos de democracia? Não. Quando há homens de «esquerda» a elogiarem Salazar em fotobiografias; quando há «historiadores» formados pela revista História, declararando que Salazar foi o maior estadista do século XX (como se isso significasse alguma coisa de relevante) e denegrindo a memória de homens da grandeza moral de Aristides de Sousa Mendes; quando há um site na internet cujo único objectivo é combater a entrada de estrangeiros em Portugal e se diz não-racista e não-xenófobo; quando, enfim, um chefe de redacção recusa a publicação da carta de um colaborador habitual por criticar decisões tomadas em seu nome à revelia da sua vontade - quando isto tudo sucede, haveria eventualmente algo a temer. Mas isto são apenas sintomas de um mal muito mais profundo, como nos ajuda a perceber José Gil: o medo de assumir, o medo de «inscrever» na vida o diferente, o medo de existir, o medo de agir, o medo de romper com as expressões da nossa impotência. Porque realmente, num país como este, «ser pessimista» ou ser adepto do derrotismo é cómodo: alivia-nos da aborrecida tarefa de arriscar; «admitir a culpa» é cómodo: basta que a descarreguemos no confessionário (seja de uma igreja, seja da TVI); a maledicência ou silenciamento são cómodos: dispensam-nos do combate franco e fecundo de ideias. Que tem tudo isto a ver com as eleições que se aproximam? Tudo. A democracia não é um acabado. A democracia é um a-fazer, uma «promessa contínua» (Derrida), «uma aprendizagem», acrescenta José Gil no fim da sua obra. Uma vez mais o nosso futuro se joga, é certo, mas não definitivamente. Nem muito menos apenas partidariamente. O erro de avaliação que os velhos do Restelo fazem está precisamente aqui: não é o sistema democrático que está em crise, o que está em crise é o sitema partidário. Ou ainda melhor: a crise é integrável em democracia, como transição para algo mais desejável na vida em sociedade. Ora, a crise do sistema partidário apresenta-se como uma oportunidade, um desafio à sociedade civil, à participação activa dos cidadãos, o que José Gil denomina «aprendizagem da expressão». Dito de outro modo: é urgente que o português erradique o salazarismo do seu modo de ser e perca o medo de existir, de agir e de se expressar. Paulo CarvalhoDiário de Aveiro |