Ocorreu-me, neste princípio de ano, um pensamento que me anda cá dentro e não me deixa adormecer, nem ficar fora da vida concreta, nem a azedar à medida que os anos passam, assim como que mordido por um mosquito que só fala de incómodos, de situações negativas, de sonhos que viraram pesadelos. Aprendi a tempo que não se pode viver fora da vida e da nossa história pessoal, da vida das pessoas vivas, da realidade que nos envolve, da vida pensada como projecto para uns e realização inacabada para outros. Não se pode, ou seja, há que estar atento e activo para que tal não aconteça. Perde-se o contacto com a realidade e com as pessoas que fazem parte inevitável do nosso viver e aumentam as distâncias que empobrecem. São distâncias que fazem rarear o amor e tornam difícil, às vezes impossível, o apreço mútuo, o diálogo e o empenhamento nos problemas comuns. Ilustram-me esta observação algumas frases típicas que denunciam que o muro que se levantou e a pôs a comunicação em perigo, por exemplo, entre adultos e jovens. “Desisti de entender a gente nova”, dizem, meio enfastiados, os mais velhos, incluindo pais e educadores diversos. “Não te fies em ninguém que tenha mais de quarenta anos”, confidenciam entre si os mais novos, cansados de conselhos, de suspeitas, de comparações com os tempos que já lá vão e que permanecem, como modelares, para quem não entende o presente porque ficou acorrentado ao que já vai. Não se vive no passado, ainda que dele se tenha herdado algum património de experiências e aquisições que ajudam a viver hoje. Esta reflexão, sempre actual, vem agora a propósito do muito que se falou nos largos milhares de jovens, chegados de longe e de perto, que invadiram Lisboa e trouxeram na bagagem a vontade de se encontrar com outros para rezar, reflectir, partilhar, conviver, sonhar. Dizem eles que a gente nova tem parte importante na construção do mundo de hoje e de amanhã. Os jovens, mesmo os de ao pé da porta, denunciam uma nova cultura que muitos adultos ainda não perceberam e, obviamente, não aceitaram. A sua vida não é comandada por raciocínios lineares, mas pelo coração e pelos afectos que os precedem, os quais têm o seu tempo de indispensável validade. Com os jovens, pelo coração se vai à cabeça e não ao contrário. Desarmei uma simpática senhora que, irritada com o comportamento dos jovens num encontro em que participavam adultos e jovens, me pedia que pusesse fim às suas irreverências, quando lhe disse ao ouvido:”São os seus netos!” Caiu em si e tudo começou a mudar. A distância diminuiu e o contacto tornou-se positivo. Afinal, os jovens são maravilhosos, disse ela por fim, conquistada pela sua irreverência criativa. Foi preciso tocar o coração. Por aí, mesmo os mais vulneráveis, se tornam lúcidos. António Marcelino* *Bispo de AveiroDiário de Aveiro |