Em tempo de Natal, quando as iluminações e os cânticos já enchem as ruas, quando as pessoas, carregadas de embrulhos com laçarotes, se acotovelam nas lojas, tudo a parecer indicar bem estar e abastança de meios, os jornais atiram uma grande pedrada para o charco da insensibilidade colectiva. “Fome mata (no mundo) cinco milhões de crianças por ano”!. “150 mil crianças (portuguesas) em risco”. A ONU critica falta de empenhamento da comunidade internacional e a UNICEF fala de mil milhões de crianças, a nível mundial, vítimas da miséria e da guerra, fruto esmaecido e a sangrar pela extrema pobreza de muitas famílias e nações, resultado escandaloso de grandes interesses económicos. Os que produzem armas que matam e destroem, enviam depois para os mesmos países, com ar compungido de generosos protectores, toneladas de alimentos e de remédios, tentando apagar a fome e as dores que geraram e calar a sua má consciência Esta é, de há muito, uma realidade de todos os dias, agora mais incómoda, porque mais conhecida e porque o tempo de Natal amolece os corações endurecidos e torna-os propícios, ao menos por um tempo, para sofrerem e partilharem, com os mais desditosos, mormente se a sua miséria está próxima e chega, de algum modo, aos seus olhos e demais sentidos. Não quero que este seja, da minha parte, um discurso hipócrita. Tantas vezes o é dos que fazem da pobreza arma de arremesso contra os seus diversos adversários. Trata-se, porém, de uma realidade que incomoda. O pecado da insensibilidade frente a males alheios, que gera e fomenta injustiça e miséria social, é um pecado estrutural, que será sempre de difícil arrependimento. Uma multidão de interesses impede que a contrição vá até à inteligência e ao coração, e uma não menor multidão de razões tenta justificar a inércia pelo que não se faz e as decisões que favorecem interesses públicos e ocultos. A culpa pela falta de bons propósitos será sempre dos outros. Aqui, sim, que há ignominiosa hipocrisia. Nenhum de nós tem capacidade para resolver os problemas sociais que geram miséria e impedem as pessoas de ser pessoas. Mas está ao alcance de todos contribuir, de algum modo, para debelar a fome e a miséria dos que nos estão mais próximos, pela partilha do pouco ou do muito que temos, a denúncia das injustiças e de quem as provoca, bem como da inércia de quem tem o dever de encontrar caminhos de solução, a participação na acção diária, organizada e atenta, dos grupos e comunidades locais. O que cada um pode fazer, ninguém dispensa que o faça. O que está ao alcance dos grupos de voluntários e das comunidades, torna-se um dever realizá-lo. No Natal, e não só, há que dar sentido à fraternidade efectiva. Há muita gente sensível e generosa que o é todos os dias e sem reservas. A denúncia ganha força e sentido se provém de quem actua e se empenha. D. António Marcelino* *Bispo de AveiroDiário de Aveiro |