Editorial
A revolta dos inocentes
Se o caso de Carlos Cruz serviu para pôr o país de tanga que somos virada do avesso com a pior das marcas, também serviu de certo modo para os milhares de vítimas inocentes, espalhadas um pouco por toda a parte, quebrarem as grilhetas da vergonha e do medo e falarem, com lágrimas e vozes algo ainda amedrontadas, dos seus segredos, fechados a sete chaves.
E temos que convir que o estendal de casos é tão variado e tão grande, a começar pelo número de crianças abusadas nos lençóis familiares, que, a partir de agora, jamais teremos o direito de invocar que somos um país de brandos costumes.
Estes são casos menores para a comunicação social, mas de igual gravidade, mas efectivamente o que dá audiência é a prisão de Carlos Cruz, por fortes indícios de pedofilia, e tudo o que envolve, a que a alguns se apressaram a juntar alguma ficção, por sua conta e risco. Outros, por sua vez, logo encontraram razões para o branqueamento, atirando as culpas para o magistrado que, sendo de manhã, quando teve de tomar a decisão, o terá feito de olhos a dormir. Outros ainda estão mortos para que surja borrasca entre a PJ e o magistrado encarregado do caso, preparando mesmo o terreno para um possível ajuste de contas por este ousar desferir esta machadada numa carreira tão brilhante de um ídolo ou um pequeno deus com pés de barro. E supostamente imundos. Quem publicou a foto do magistrado, da familia e da própria casa, não sabe o que fez e o atalho dos riscos que abriu. Para já, com a guarda pessoal que acompanha magistrado e família, a justiça encarece.
Para além de todos estes, ainda há aqueles que tudo lhe querem perdoar em nome da fama e altar onde foi incensado. Os outros, os que não têm nem fama nem altar, ficam sempre mais prejudicados. E desprotegidos. Não têm direito a guarda pessoal
Para todos estes que assim procedem, parece não haver vítimas, crianças emparedadas entre uma sociedade demasiado permissiva e anulada de certos valores e referências.
De uma vez por todas, assente-se numa coisa: de um lado, os actos e comportamentos reprováveis e desviantes e, do outro, as vítimas. Vítimas que têm de merecer muito maior atenção do que a outra parte.
O lodaçal, encoberto por uma compacta crosta feita do desinteresse de uns e o silêncio comprometido de outros, abriu-se assim perante os nossos olhos e a nossa consciência. Com o caso da Casa Pia, com Carlos Cruz. O país espantou-se. E Carlos Mota, assessor de Carlos Cruz, desabafava mesmo: “Se Carlos Cruz é pedófilo, todos nós somos pedófilos”.
Nós, alto lá! Ele lá sabia a que se estava a referir. Naturalmente, milhares, como se vai sabendo. Demasiados casos para um país tão pequeno. Ele também mal sabia que a língua estava a fugir-lhe para a verdade. Também ele consta da lista negra.
É caso para perguntar claramente:
A justiça, afinal, que andou a fazer este tempo todo? Porque, afinal, o lodaçal não é de há dias, é de décadas. E, sendo assim, é caso para dizer que não nos venham com essa hipocrisia de nos dizermos um povo de brandos costumes. Vê-se que não somos. A revelação deste nosso lado oculto e obscuro abre-nos uma cicatriz, uma ferida de doer e preocupar. De certo modo também por culpa da sociedade que somos. Temos vindo a perder qualidades, valores e referências, somos uma sociedade permissiva, um país à deriva.
Os casos agora já são todos os dias. Na rádio, nos jornais, na televisão, junto da APAV (Associação de Apoio à Vítima) onde chegam todos os dias confidências e vozes revoltadas, em número crescente, - a revolta dos inocentes, que uma sociedade manteve de boca amordaçada por medos ancestrais ou natural vergonha, ou simplesmente por terem apontadas à fronte uma espingarda ou uma faca.
Hoje é mais importante saber ouvir e escutar os rios de lágrimas e vozes entristecidas e marcadas de solidão por toda a vida do que continuar a dar atenção à luta entre a comunicação social que quer, de um momento para o outro, julgar, absolver ou condenar, concorendo para que a justiça não tenha um desenvolvimento normal, e os tribunais, cujos processos são mais morosos, já que passam por várias fases. E como damos tudo por um bom mexerico e um bom romance, há quem defenda até o levantamento do segredo da justiça... Seria o bom e o bonito, sem que isso signifique beneficiar o detido ou a justiça. Talvez mais o primeiro. Quem beneficiava eram certamente os canais de televisão, sempre mortos por uma boa intriga romanesca, também os jornais, com uma telenovela de baixa extracção, naturalmente. E, sendo assim, continuará o Zé-ninguém a ser o que sempre foi. Quase um zero à esquerda.
(12 Fev / 10:59) Diário de Aveiro |
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