Crónica da América
Uma Ode à Bicicleta
Manuel Calado
Há muito que ando para dizer duas coisas em louvor da bicicleta. Este
magnifico instrumento de locomoção, em cima do qual o americano Armstrong
obra hoje maravilhas de resistência fisica, é o mesmo que separou o homem do
cavalo. A bicicleta, foi a primeira máquina que ultrapassou a velocidade do
animal. Ela foi o génesis da revolucão velocipédica.
E o que é verdade, é que eu sinto para com a bicicleta, uma afinidade
afectiva especial, visto ter sido o meu pai que Deus tem, o primeiro homem a
ter uma bicicleta em Soza. Ele foi , na terra , o primeiro a libertar-se das
longas caminhadas para feiras e romarias. E estou a ve-lo, muito ancho,
encavalitado na sua bicleta Triunfo, de fabrico inglês, em companhia de
outros «playboys« do seu tempo. Muinto poucos, sem dúvida, pois quem tinha
bicicleta, era considerado um ponto acima, na escala social e económica da
era.
As moças lavradeiras e casadoiras deviam então olhar para um homem de
bicleta, como olham hoje para quem vai ao volante de um Mercedes ou BMW.
E uma velhota vizinha contou-me um dia por meias palavras,para não dizer
muito, que o meu velho, no seu tempo,era um rapaz guapo e que lhe não
faltavam moças lá pela região da Bairrada. E foi precisamente na Bairrada que
ele foi desencantar minha mãe, então uma moça bonitona, com menos l5 anos
do que ele, que ia já na casa dos trinta e tais, quando deixou a
bicicleta…Isto é, quaqndo deixou as namorações.
Os restos mortais dessa bicicleta , vim encontrá-los um dia no lagar do
vinho, debaixo das agulhas de pinheiro com que se acendia o lume na lareira.
Para a minha curiosidade de menino aventureiro e sonhador, leitor do Pim
Pam Pum, foi como se tivesse encontrado um tesouro. Já tinha andado no
quadro da bicicleta de paiu do meu vizinho Júlio, pela ladeira de S. Roque
abaixo, com a sola dura dos pés fazendo de travões, mas nunca numa bicicleta
de ferro. Teria então os meus seis ou sete anitos. E a primeira coisa que
fiz, foi limpar as agulhas e sentar-me no selim de cabedal. Foi para mim uma
sensacão nova que não posso esquecer.
Os meus pés, claro, não chegavam aos pedais, mas nem era preciso. A
imaginação fazia o resto. E, pedalando em seco e tocando a campainha, eu ía
por montes e vales à descoberta do mundo desconhecido. Não tem conta as vezes
que subi para o lagar, para me sentar em cima da bicicleta, julgar-me rapaz
grande, pedalando rua abaixo e rua acima, perante a inveja do Faré, do
Roubaco, do Russo e do Chicharro, os meus amigos da brincadeira.
E um dia, quando em casa se dormia a sesta, eu tirei a bicicleta do
lagar, a muito custo,saí pela porta de trás, atravessei o quintal do tio
David, pai do Roubaco, e fui para a ladeira da Lavandeira, sentei-me em
cima da roda dos pedais, os pés no chão , a servir de travões, as mãos em
cima no guiador, e larguei-me por ali abaixo. Os pneus, secos, sem ar,
começaram a cair aos bocados. A roda de trás ia só no aro, mas isso não era
problema. As bicicletas de pau também não tinham pneus nem câmaras de ar.
E andei assim, para baixo e para cima umas poucas de vezes, sózinho,
explorando o meu mundo de menino, enquanto animais e gentes dormiam a sesta,
descansando os ossos cansados e fugindo à torreira do sol.
Mais tarde, meu pai tirou a bicicleta do lagar e colocou-a ao cimo da
escada no sótão das bandeiras de milho. Era aí que eu passava os meus
bocados, montado na bicleta, pedalando no ar, sem chegar aos pedais, ao
longo de terras desconhecidas, pelos caminhos enluarados da minha imaginação
de menino.
Só por isso a bicicleta representou para mim um papel de relevo. Vi nela
a libertação das longas caminhadas. Tinha a intuição de que o homem havia
dado um passo de gigante no caminho da sua libertação. A bicicleta marcou o
início da era da velocidade. E é a velocidade que tem marcado a escala do
progresso humano.
Quando cheguei à America, a velocidade màxima até então atingida pelo
ser humano, eram as duzentas e tais milhas da velocidade do avião. Neste meio
século cruzamos a velocidade do som várias vezes, até chegar à lua e aos
planetas, em veículos pilotados ou sem piloto.
E pensar eu que meu pai esteve no início dessa odsisseia! Não sei que
velocidade ele teria atingido por estradas pedregosas ou cheias de covas e
lama. Dez quilometros? Talvez vinte ou trinta nas ladeiras. Mas sempre era
mais do que a velocidade do velho cavalo do tio Cavilha, puxando uma charrete
tão velha como ele, quando era preciso ir ao doutor, ou a visita de cortesia,
para fazer figura e poupar as solas.
Mas como esta já vai longa, terei de contar de outra vez a história da
minha bicicleta de rapaz e das minhas andanças por terras da Bairrada e da
Beira Mar.
Minha Bicicleta de Menino
Andei por montes e vales
Sem sair do mesmo sítio
Pedalando com ardor
Como se andasse entre as núvens
Num tapete voador
Voei por cima de montes
Sobre o mar da emoção
Com rodas presas nos pés
E assas no coração
(19 Ago / 11:00)
Diário de Aveiro |
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