SONHOS, DESENCANTOS E LUTAS
Ficou célebre a frase de Luther King “Eu tenho um sonho!”, proferida em 1963 na marcha pelo emprego e pela liberdade, direitos que reivindicava para os seus irmãos negros dos Estados Unidos, marginalizados no seu país, que se arvorava, já então, em pátria da democracia e grande defensor dos direitos humanos. Uma frase que gerou luta e lhe ditou a morte cinco anos depois, mas não o impediu de dizer “se eu soubesse que o mundo acabava amanhã, ainda hoje eu plantava…” Um sonho profético que acabou por levar, quarenta anos depois, um negro à presidência do país, mostrando que os grandes sonhos não geram frustrações, nem redundam necessariamente em pesadelos. Quando um sonhador está vivo, os seus sonhos geram vida.
Sou da geração de Luther King, nascido no ano seguinte ao do seu nascimento e, também eu, com muitos sonhos de que tenho a certeza não redundarão em desencanto, embora a sua concretização esteja deparando com inércias e correntes contrárias, que fazem lembrar e pensar num túnel muito longo e escuro. Mas, como túnel, tem saída.
Irei escrever nas próximas semanas sobre estes sonhos, que não são apenas meus, mas de muitos que, como eu, viveram, já em plena luta pela vida, o Vaticano II e o 25 de Abril e nunca deixaram de lutar para que a esperança gere vida, embora muitas vezes impacientes com demoras inesperadas, mas não vencidos por estas.
Lê-se na Bíblia que “é preciso suportar as demoras de Deus”. Ao lê-lo só se pode ficar sereno quando se percebe e se aceita que as demoras de Deus são as nossas, e que estas traduzem os limites humanos normais, mas, também, a inércia de quem não se dispõe a entrar no ritmo necessário, para que haja conversão de atitudes e métodos de acção, e a vida e muitas coisas que dela fazem parte, mudem para melhor.
As dificuldades, quando confrontadas com sonhos legítimos, ou levam à revolta, ou à resignação, ou são apelo veemente a novas formas de luta criativa e persistente.
Quem viveu antes do Concilio Vaticano II a vislumbrar tempos novos que se adivinhavam para a Igreja, ou viveu nas décadas anteriores à revolução de Abril, incomodado com situações lesivas da liberdade pessoal e do direito a sonhar alto num país com muitos adiamentos, entende perfeitamente como é importante sonhar para viver.
O poeta diz que “o sonho comanda a vida”. E o povo replica que “sonhar é fácil”. Seja como for, também eu, como tantos outros, sonhei e continuo a sonhar acordado. Só este sonho é capaz de ter influência na vida concreta, seja na da Igreja, seja na da sociedade.
As instituições fundamentais, civis ou religiosas, não são estáticas e as pessoas, relacionadas com elas, não podem ser simples espectadores ou turistas que chegam e partem.
O gosto de viver está unido à capacidade de sonhar e à decisão de lutar. Sonhar e lutar por causas nobres e pela solução de problemas urgentes, que estão impedindo que a vida circule ao ritmo do tempo que muda.
Há na vida amores que nunca se eclipsam. São os que justificam as opções fundamentais, as qualificam, e justificam todos os esforços, a ponto de a pessoa não se furtar a nada para as concretizar.
O tempo, a idade, as dificuldades sentidas, nada é determinante, quando se está já determinado por um ideal e um sonho que justifica a vida com tudo o que ela comporta e exige. Luther King, um cristão convicto, que uma bala malévola matou aos 39 anos, continua vivo no sonho e pelo sonho que deu vida à sua vida.
António Marcelino Diário de Aveiro |