Na anterior legislatura um deputado do PS, passados meses, abdicou do seu mandato e deu como razão que tinha ido para a Assembleia para conseguir a lei do casamento dos homossexuais. Porque já o tinha conseguido, não havia razão para permanecer por ali mais tempo. Ao iniciar-se a nova legislatura é oportuno reflectir um pouco sobre a missão legislativa da Assembleia da República, o valor de quem a ela preside, quem ocupa, ciente da sua missão, o lugar de deputado ou simplesmente por lá anda.
Nas eleições para este órgão da soberania parece contar mais, por parte dos eleitores, a preocupação pelo partido a que dão o voto do que o juízo sobre os candidatos propostos. E este juízo torna-se necessário quando se sabe que alguns deles estão lá mais como obedientes silenciosos, que protagonistas competentes e activos. A lógica partidária, neste e noutros casos, não é sempre clara nem limpa, ou, pelo menos, não se percebe como tal.
Fazer as leis segundo as quais se vai governar o país é missão da maior importância. Feitas as leis, a começar pela Constituição, considerada como referência máxima e indispensável, tudo vai depender delas: Governo, tribunais, vida e acção das pessoas e das instituições. O sucesso da democracia não é apenas de obediência ou de vitória das maiorias partidárias, processo importante para evitar impasses, mas é, também, a expressão aceitação e fidelidade a valores indispensáveis ao respeito pela pessoa e sua dignidade, à garantia dos direitos fundamentais, em igualdade de condições para todos os cidadãos, à aceitação do bem comum, como “fim e critério regulador da vida e actividade política”.
Conceitos confusos como o de “Estado social”, um exemplo bem significativo e actual, viciam a feitura das leis, desvirtuam a participação do povo, servem ou dificultam apenas a acção dos governos, segundo a sua postura ideológica e os interesses partidários em causa. Se os deputados são impedidos de pensar e têm de votar por obediência como lhes é mandado, muitos aspectos da vida nacional serão coados por uma lógica que não será a do bem de todos.
Certamente que não é necessário que todos os deputados sejam peritos em leis, mas não se dispensa que sejam sensatos, conhecedores da realidade, corajosos para intervir para além de o fazerem a favor da construção do fontanário ou da localização de um equipamento público qualquer. Para isso, que até pode ser importante, têm instâncias próprias. A Assembleia da República é órgão com outras funções, que não se podem delegar em meia dúzia de deputados inteligentes e sabedores.
Há leis injustas, destituídas de realismo e de ética, não orientadas para o conjunto do país, as quais, mesmo que tecnicamente correctas, não respondem à tarefa legislativa. Aos candidatos a deputados, antes das eleições, era talvez útil a participação obrigatória em sessões de informação e formação não partidárias, mas de ordem social e jurídica, com base no conhecimento objectivo do país, da realidade, necessidades e capacidades. Isto não se faz, porque não se considera importante e, a alguns será talvez melhor não lhe abrir os olhos, nem lhe espicaçar a inteligência.
Por vezes penso que a nossa democracia está longe da maturidade, dado que ainda não se debruçou a sério para reflectir e tirar consequências sobre a importância decisiva da função legislativa. Nem tudo é evidente quando se trata de encontrar os melhores caminhos para servir o país. Por isso tem de haver debate e diálogo, confronto de ideias e de propostas.
Mas é estranho ouvir-se criticar na oposição o que se defendia no governo, e fazerem-se de antemão ameaças de não colaboração, sempre que se pense correrem risco alguns interesses partidários e corporativos. O país tem de estar acima de tudo isto. E estará, por certo, quando o exercício da democracia, exercido por pessoas livres e responsáveis, não sujeitar o país aos interesses de partidos e de grupos, antes o sirvam, sempre e acima de tudo. Aos cidadãos pede-se, desde já, uma atenção crítica. O pano já correu e o palco está cheio de figurantes. Diário de Aveiro |