O Bispo Emérito de Aveiro reflecte sobre os acordos do Estado com as instituições de ensino privado, nomeadamente os colégios, e considera que está aberto caminho a um tempo em que não se ouve e não se reflecte. Uma crítica social assinada por D. António Marcelino.
O regresso à ditadura?
O caso do ensino privado
por D. António Marcelino
Quando se esquecem exigências democráticas ou se impede que elas funcionem, abre-se a porta ao ditador. Já foi assim na antiga Grécia, onde a democracia nasceu. Foi assim ao longo dos séculos. É também assim nos tempos que correm. O governo socialista, em campos bem determinados como o ensino, a solidariedade social, a saúde, com o medo que provoca nos da sua cor que dissentem, passou a agir como novo ditador. Não ouve, não reflecte, não acolhe, desconhece a realidade, embrulha e deturpa a verdade, julga-se único para decidir e decide a seu belo prazer. Faz tábua rasa do povo e da história, nega-se a procurar com parceiros obrigatórios soluções de consenso, rasga acordos bilaterais assinados, volta costas a quem realiza trabalho de qualidade, só agrada a clientelas discutíveis, vive obcecado pelo poder, dá péssimo exemplo de democracia e de isenção a quem tem o encargo de governar.
Uma situação, que se vem tornando cada dia mais grave, refere-se ao menosprezo pela iniciativa privada. A cidadania, esclarecida e aberta, é um direito e um dever de todos. Permite enriquecer o bem comum nacional com propostas e respostas adequadas, surgidas num contexto de respeito por exigências legais justas. Foram sempre os governos totalitários que destruíram a democracia, desprezaram e impediram a legítima iniciativa privada. O Estado Social, de contornos megalómanos, sonhado e defendido por ideologias coloridas e pelo povo que só quer benefícios, com respostas impossíveis para os problemas, está condenado ao fracasso. A história assim o tem mostrado. O Estado não se identifica com um partido ou com uma força política maioritária. Ele concretiza-se na comunidade civil organizada, com lugar para todos, responsabilidades repartidas, objectivos claros ao serviço das pessoas. Muita gente, levada por uma partidocracia míope, que mais procura ocasiões para reinar e se governar a si, do que para servir, ainda não o entendeu ou não o quis entender.
Os governos, em geral, têm tendência para se tornarem totalitários. O que não conseguem por competência e engenho impõem-no por um poder discricionário.
Está na praça pública o problema do ensino privado. Vamos percorrer a história. Séculos atrás, a iniciativa do ensino alargado e qualificado surgiu sempre por iniciativa da sociedade civil. Já quase em meados do século passado, o governo esforçou-se para garantir a todos os portugueses o ensino básico. A outros níveis, abriram-se escolas estatais, mas apenas nas cidades e vilas mais importantes. A democratização deu-se, mais uma vez, a partir de grupos locais e de instituições da Igreja que se preocupavam com a promoção dos jovens mais pobres, onde quer que vivessem. Chegamos ao 25 de Abril.
Revolucionários do PREC, vazios de cultura, mas cheios de ódios, assaltaram colégios da província com uma história longa de bem-fazer e destruíram, como inúteis, escolas, livros e monumentos locais. Quiseram apagar a história. E, como se fôssemos um país abastado, abriram-se então escolas estatais onde já as havia privadas, que foram injustamente desprezadas e fechadas. Verificou-se, a seguir, uma campanha de desinformação da opinião pública, que persiste ainda, fazendo-se crer que todo o ensino privado era elitista e só para os ricos. Aceitava-se, como ensino gratuito, só onde o Estado não podia ainda chegar. Era o tal “papel supletivo” do ensino privado.
Por ideologia e bairrismos locais construíram-se escolas estatais onde o parque escolar privado já existia e era de qualidade e iniciou-se um projecto claro de asfixia, a seu tempo, do ensino privado, dito supletivo. As escolas estatais precisavam de alunos e muitos pais optavam pelas escolas privadas. Para os brios dos governos isto não era admissível. Depois, vieram os pagamentos em atraso, a redução arbitrária de turmas, a multiplicação de exigências que não existiam para a escola estatal. Assim se chegou à situação actual de um injusto extermínio, por uma morte lenta, de há muito cuidadosamente programada e sempre desejada por forças ideologicamente totalitárias e por grupos corporativos que nada vêem além dos seus interesses.
O Ministério da Educação está inquinado, desde há muito. Até Salazar teve de fazer cedências à maçonaria, que já então dominava o Ministério, para poder governar noutros campos! Quem por lá passou com saber, sentido de responsabilidade e ideias abertas, nunca aqueceu o lugar e foi torpedeado de mil maneiras.
O problema resume-se a estes pontos: o Estado democrático não pode impedir, antes, deve fomentar a iniciativa privada, sempre que o bem comum o exige ou solicita, porque a educação, em democracia, não é monopólio do Estado; a aceitação das iniciativas das forças intermédias da sociedade, quando sérias e qualificadas, é sempre uma riqueza para o país; o direito à educação - ensinar e aprender - e à escolha pelos pais de um projecto educativo para os seus filhos só se pode exercer se houver alternativas, e as escolas com contrato de associação, como o vêm provando, são uma alternativa credível; o ensino privado, em democracia, que abriu entre nós caminhos por esse país fora, não é, por sua natureza, supletivo do Estado, mas traduz um direito social respeitável, sendo, por isso, uma mais-valia para o sistema educativo, porque só no confronto leal de projectos educativos, se podem aperfeiçoar e gerar propostas qualificadas; o Estado não faz qualquer favor aos particulares, nem prejudica o país, ao proporcionar o ensino gratuito, através de escolas privadas, a todos os que já as podem escolher, pois a função do Estado é garantir um serviço público válido de educação, seja ele exercido por escolas estatais ou privadas; o Estado aplica o dinheiro dos contribuintes em benefício de todos, não como dono ou a favor dos seus interesses políticos, mas como administrador fiel do que não lhe pertence.
O que o governo socialista faz agora e quer continuar a fazer, a falso pretexto da crise económica, e que é urgente denunciar, constitui um retrocesso democrático, uma ameaça grave de contornos ditatoriais, uma negação clara do mais legítimo pluralismo, uma injustiça que a história guardará com o seu juízo crítico inexorável. Diário de Aveiro |